Não existe cabelo ruim - o início

Outro dia estava lembrando da primeira vez que me dei conta que o meu cabelo era muito diferente da maioria. Ia cortar o cabelo com alguma amiga da minha mãe. Ela havia me perguntado como eu queria o corte. Disse que queria o corte igual a de uma atriz que havia visto na televisão. O detalhe é que a atriz tinha cabelo liso.

Não me recordo de muitas coisas da infância, mas isso me marcou bastante. Ela, com todo jeitinho, falou que o meu cabelo era diferente, que não daria pra ficar daquele modo. Acabamos com o corte curtinho de sempre porque eu era a rainha do piolho. Ele passava lá na esquina e pluft! O meu imã capilar captava ele. A solução, infelizmente, era cortar mais baixinho os cachinhos com fios super finos que embolavam demais. Sempre tive muuuuito cabelo. Juba master que só fui me entender com ela muitos anos depois.

Na infância convivi com muitas crianças de cabelos lisos. Achava estranho não poder ter as marias chiquinhas que balançavam, mas ok. Seguimos em frente. Nunca ouvi dos meus pais algo ofensivo sobre meu cabelo ou da minha irmã. Eles precisavam dar um jeitinho e era isso. Achava apenas que não tinha um cabelo que balançava, que queria muito ter. O fato é que não tinha referência familiar de cabelos bonitos crespos ou cacheados. Mesmo com a família predominante negra do lado paterno, todas as mulheres alisavam os cabelos. Minha mãe é da turma da resistência. Morena, com cachos, mas largos, tipo 2, bem diferente dos meus.

Foto: Pinterest

Mas foi no colégio, só para meninas, que me dei conta o quanto eu era diferente. Nunca era a dama nas festas juninas. Cabia a mim o papel de cavalheiro por conta do cabelo curtinho e o pior: do chapéu que não entrava porque os cachinhos não deixavam. E assim fui crescendo, o incômodo aumentando. Lá por volta dos meus 09/10 anos fiz minha primeira química capilar, para ter cachos balançantes, felizes ao vento. Dali em diante só fui saber o que era meu verdadeiro cabelo, que obviamente nem lembrava mais como era, uns 20 anos depois. O resto da história conto aqui e nesse post da minha cronologia capilar. 

Há poucos dias ouvi pessoas falando sobre o cabelo ruim, cabelo que não tem jeito, cabelo difícil. A menção sempre feita a cabelos étnicos, do tipo 3C em diante.
Aí dividi com vocês, para saber as impressões. E as respostas foram diversas.



São tantas as impressões e me sinto feliz que a maioria não esbarre no racismo, na discriminação. Mas ele existe e tem um peso imenso nesse processo de aceitação.
Venho me questionando aonde isso tudo começa.

Vez ou outra recebo mensagens de mães que não sabem lidar com os cabelos dos seus filhos. Aí leio:
"São difíceis", "cabelo ruim, né?", "Ela não deixa pentear", "Com quantos anos pode amansar?", "Não é que eu não goste, mas é difícil", e tantas outras expressões que soam, pra elas, comuns.
Ok. Tem dia que o cabelo não ajuda mesmo. Produto errado, muito embaraçado, fios fininhos demais, mas vamos lá. Raciocina comigo...

Acredito que muitas falam isso direto para seus pequenos. Porque eu sei que quando criança encasqueta, haja Jesus na causa. Vai querer sair de fantasia de caipira com bota em pleno verão e de super herói no casamento. Só que quando rolar a fuga: "NUM QUÉ PENTEAAAAR", não diga que é ruim o cabelo da criaturinha. Que é um inferno ou qualquer outra declaração nada gentil. Mesmo que inconsciente, isso vai sendo incutido na cabeça da dela. Daí para uma não aceitação que vai acompanhar por toda vida é um pulo.

Já vi crianças falando que seu cabelo era ruim. Ela não tirou isso da cabeça  dela. Ela não inventou do nada. Alguém falou isso pra ela. E por mais que o mundo seja pra lá de cruel (as maiores barbaridades ouvi na época do colégio), é importante que as pessoas próximas, que cuidam desse serzinho lindo, enalteçam sua auto estima.

Foto: Pinterest

Parei de pisar cedo em salões porque desde pequena ouvia as expressões: "NOSSA, MAS VOCÊ TEM MUITO CABELO" / "TÃO BONITA / TÃO CLARINHA (???!!) MAS ESSE CABELO...". Isso acompanhado de uma cara de nojo / horror / piedade. Sempre acabava com uma química "solução de todos os problemas" que não solucionava.

Outro dia meu afilhado, cabelo tipo 4, lindo que só, veio falar pra mim que queria ter o cabelo liso. Aí perguntei: mas por que? Ele falou que o amigo do colégio tinha cabelo liso e que penteava. Disse pra ele que tinha o cabelo lindo porque tinha cachinhos, que do amigo também era bonito, mas que cada um tinha um cabelo diferente. Perguntei se ele achava o cabelo da dinda feio. Ele disse que não. Aí disse: Viu? Seu cabelo é bonito que nem o da dinda, da mamãe dele, do papai, do outro amigo que tem o cabelo igual ao dele (e que é mais velho). Aí pronto. Ficou tooooodo se achando.

É importante a gente se atentar ao que fala. Tenho amigas que suas filhas tem cabelo liso. Reclamam a beça pra desembaraçar. Muito! Mas isso, lá na frente, não fará diferença. Não fará com que essa criança ache que tenha "cabelo ruim". Ela apenas não cuida. Jamais terá a carga que o nosso tem. Quem ostenta uma cabeleira étnica o buraco é sempre mais embaixo.


Foto: Pinterest

E esse blá, blá, blá todo pra que, hein? Pra gente não descuidar da raiz dessa bagunça toda. Claro que não quero minimizar a problemática toda que envolve o racismo, que é gigantesco. O que tento aqui é fazer com que a gente valorize a nossa natureza. Nos fortalecer pra encarar esse mundo bizarrão, que tem muita coisa bonita pra gente se inspirar. Pra gente valorizar os blacks mirins, pra parar de falar que o cabelo dos pequenos é feio, duro, ruim. Muito dos nossos problemas mais tarde passaram por essas falas que são internalizadas.  Não é por aí. Hoje, graças ao divino, temos vários ícones para nos inspirar. Vários negros e negras incríveis, que exalam representatividade, beleza, auto estima. Sou de uma época que os ídolos negros não eram sinônimo de beleza. O bonito era ter cabelo alisado. Hoje temos muitas inspirações. Uma voltinha na rua e você verá um, pelo menos um, que vai te chamar a atenção pela beleza de um cabelo natural.

Não sabe cuidar? Tem um monte de informações por aqui, pela internet, pra te ajudar na missão. Muitos conseguem formar crianças com a auto estima em dia. Através de aprendizado, esforço e cuidado.

Esse post nasceu por conta de um episódio. Hoje conheci Isabela. Uma pequena, com seus 3 anos, cachinhos tipo 4, que me falou assim: você não tem uma filha bonita que nem eu? Com os cachos bonitos que nem o meu?
Falei que não tinha uma filha. Mas que se tivesse queria que fosse bonita e com cachos bonitos que nem os dela.

A mãe, com uma black divooooo, me falou que ela AMA os cachinhos dela. Senti orgulho por elas. Porque sei que não é nada fácil essa construção, mas elas estão conseguindo.

Foi lindo de viver.

; )


A segunda parte sobre o assunto coloquei aqui. Aguardo sua visita! 

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Sobre a Crespa

Claudia Montelage é cantora, botafoguense, libriana, sócia da Dois Versos e desde de 2012 pilota o blog "Eu Sou Crespa". Resenhas, tendências, transição, indicação de salões e profissionais, exemplos reais, aceitação e valorização do cabelo natural fazem parte dos temas abordados nesse espaço dedicado aos cabelos crespos e cacheados.!

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